Artigo publicado originalmente na edição 154 da Revista Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP | Saiba mais sobre o periódico de Contratação e Gestão Pública
Ivan
Barbosa Rigolin - I A Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, que
instituiu o mais recente estatuto nacional das microempresas e das empresas de
pequeno porte, e que em 2014 já havia sido modificada por algumas LCs e, nesse
sentido, republicada por força da LC nº 139, de 10.11.11, foi recentemente
modificada de maneira muito importante, e não apenas quanto a licitações e
acesso ao mercado, mas por assim dizer na lei inteira, dentro dos mais variados
assuntos de que cuida.
O
sol nascerá verde ou roxo, choverá vinho borgonha, a lei da gravidade será
invertida e os elefantes voarão quando o legislador brasileiro, a começar pelo
constituinte, souber o que quer da vida, e o que imagina que seja o seu
trabalho. E em épocas eleitorais esse infando drama piora, como agora.
A
LC nº 123/06 agora deve ter parecido ao legislador que foi costurada às pressas
ou de qualquer maneira, e mais ou menos estava tudo errado, de modo que neste
momento o legislador precisou corrigir tudo, do primeiro ao último artigo, e
ainda acrescendo diversos artigos alfanuméricos como placas de automóvel, dando
continuidade à deletéria praga atual de permitir que entre um artigo de lei e o
seguinte existam uns outros quinze ou vinte.
A
própria Constituição não escapou dessa horrenda prática. É desalentador
constatar que não é apenas a qualidade das leis brasileiras que despenca em
queda livre há algumas décadas, mas também a própria técnica legislativa, que
na mesma esteira de falta absoluta de técnica desaba morro abaixo.
Trata-se
desta feita da Lei Complementar nº 147, de 7 de agosto de 2014, que revirou de
cabo a rabo, e pôs de pernas para o ar e de ponta-cabeça, a lei das MEs e EPPs,
como se o assunto tivesse sido instituído apenas agora. Quem conhecia a lei
anterior, então, que neste momento a reestude por completo, quase a partir do
zero.
Atendo nossa breve
análise apenas ao tema das licitações — o que reduz imensamente a tragédia
essencial da tarefa —, então, as modificações legais que cumpre focar,
ensejadas pela LC nº 147/14 sobre a LC nº 123/06, são as seguintes (que
alteraram a redação da LC nº 123/06): a) introduzido o inc. XI para o §4º do
art. 3º; b) §1º do art. 43; c) art. 47, que teve o caput alterado e ganhou o parágrafo único; d) art. 48, incs. I a
III, e §3º, revogado o §1º; e e) art. 49, inc. IV, e revogado o inc. I.
II Fica nítido com esta LC nº 147/14 o propósito pelo Governo
Federal de prestigiar uma categoria de empresas — inquestionavelmente muito
importante para a economia e o emprego —, as micro e as pequenas empresas,
fazendo-o, porém, de modo juridicamente muito questionável segundo entendemos.
O exagero é, ao que
parece, fazer sobrepor o interesse particular
das MEs e das EPPs ao interesse público nacional, o que se conclui pela
crescente restrição à competitividade nas licitações em prol do interesse
comercial exclusivo daquelas empresas.
E tal se afigura um
quadro institucional simplesmente impensável sob qualquer ponto de vista, que
inverte o princípio — se não existem condicionantes especiais, e neste caso
elas não existem — dapredominância do interesse
público e coletivo sobre o interesse privado, e que com tanto se
revela inimaginável numa democracia constitucional e institucionalizada como a
nossa, tudo conforme se examinará.
No
mais, o conjunto vastíssimo de casuísmos e de francas arbitrariedades que a LC
nº 147/14 adota, que devem ter sido decididas com a mesma afoiteza e irreflexão
daquelas originárias da LC nº 123/06 — porque nada pode assegurar que desta vez
o legislador pensou no que fez e sabe o que faz —, impressiona muito
desagradavelmente, sobretudo por atestar outra vez mais que o legislador, qual
alguém perdido no deserto e molestado por inúmeros desconfortos, atira em toda
direção sem a mínima convicção do que quer que seja, desprovido de qualquer
norte capaz de propiciar à lei alguma durabilidade, alguma expectativa de
permanência. O improviso originário dá lugar a novo improviso.
Quase
tudo na nova LC nº 147/14 parece erraticamente lançado ao papel sem a mínima
perspectiva de estabilidade, sem nenhuma visão de futuro, sem qualquer
preocupação finalística ou estrutural, a configurar um conjunto apenas
imediatista, útil mais ou menos até o fim do ano e possivelmente descartável
logo após, em favor de outro modismo que surja, tão despreocupado com o futuro
quanto o foi a nova lei.
Pela
sua questionabilíssima sistematização, aparentemente improvisada à última hora
e lançada à véspera da eleição presidencial, aparenta ser destinada, como quase
todas as últimas leis brasileiras, a servir por alguns meses até a próxima
reforma, que terá tudo para ser tão frívola quanto esta e que poderá inverter
todas as regras com a mesma sem-cerimônia. Infelizmente, recorda um baile na
roça, ou a festa do caqui.
Resta a nítida impressão
de que a bandeira claramente eleitoral — a lei é de
agosto de 2914 e eleição presidencial em outubro de 2014 — do favorecimento às
micro e pequenas empresas inverteu as mais eloquentes premissas do Estado
Democrático de Direito e as colocou a favor do interesse privado de um, imensamente
importante, setor empresarial brasileiro frente ao interesse da Administração
Pública, o qual reflete, ou ao menos deveria sempre refletir, o melhor
interesse público.
III Comentemos passo a passo cada qual dessas modificações:
Art. 3º (…)
§4º (…)
XI – cujos titulares ou sócios guardem,
cumulativamente, com o contratante do serviço, relação de pessoalidade,
subordinação e habitualidade. (…)
Inicia-se
assim pelo novo inc. XI, do §4º, do art. 3º da LC 123/06, instituído pela LC
147/14, e para elogiá-lo, ao menos no seu claro
objetivo.
Foi instituída a proibição de privilegiar micro
e pequenas empresas “cujos titulares ou sócios guardem, cumulativamente, com o
contratante do serviço, relação de pessoalidade, subordinação e habitualidade.”
A redação é um tanto
estranha, porque ninguém pode guardar relação de pessoalidade “cumulativamente”
com o contratante, porém com relação ao contratante.
Relação pessoal não se acumula, mas se mantém ou não se mantém.
Mas
restou claro o sentido da regra, que impede que o Poder Público aplique regras
legais protetivas de micro e de pequenas empresas cujos titulares ou dirigentes
sejam, de algum modo, pessoalmente vinculados ao contratante, como, por
exemplo, em caso de parentesco, compadrio, sociedade, troca de favores sobretudo
financeiros, ou outra notória relação de vínculo. Uma simples amizade ou
colaboração por evidente não constitui essa vinculação.
Quanto à menção a subordinação, nem precisaria estar escrita, porque resta inimaginável uma
autoridade contratar empresa dirigida por um seu subordinado, já que isso
constituiria sociedade, o que a Lei de Licitações, art. 9º, já corretamente
proíbe.
E,
por fim, menos feliz parece a proibição ao favorecimento de empresas ligadas ao
Poder Público por “habitualidade”. Que quis a lei referir com isso?
Se
uma empresa habitualmente ganha as licitações porque o seu produto é bom e o
seu preço é sempre o mais conveniente, então será essa espécie de habitualidade
que a lei exclui de favor? Se não foi isso que a lei disse, que então terá
sido?
Tornou-se
proibido às empresas vencerem continuadamente as licitações, ainda que o
mereçam todas as vezes em razão das suas propostas melhores que as demais? Ou,
de outro modo, que espécie deletéria ou viciosa de habitualidade poderia tisnar
a repetida contratação das mesmas empresas, se acaso são sempre as melhores nas
licitações?
Estaria
o legislador pensando em convites, para os quais as mesmas empresas, dentro de
cada ramo, tecnicamente pela lei de licitações podem ser sempre as únicas
convidadas? Seria isso? Se for, faz sentido a previsão, porém a exata
aquilatação do que seria essa habitualidade continua subjetiva e difícil.
Quantas repetições caracterizam habitualidade?
O
dispositivo é bom em seu fundo de direito, mas a redação implica dificuldades
significativas de aplicação isenta, devendo a autoridade apelar ao bom senso e
ao senso comum a todo tempo, sem pruridos moralísticos — tão frequentes em
pessoas mal resolvidas na existência — e sem entrever irregularidades onde de
fato elas inexistem.
IV Seguem as modificações à LC nº 123/06 pela LC nº 147/14:
Art. 43 (…)
§1º Havendo alguma restrição na comprovação da
regularidade fiscal, será assegurado o prazo de 5 (cinco) dias úteis, cujo
termo inicial corresponderá ao momento em que o proponente for declarado o
vencedor do certame, prorrogável por igual período, a critério da administração
pública, para a regularização da documentação, pagamento ou parcelamento do
débito e emissão de eventuais certidões negativas ou positivas com efeito de certidão
negativa.
O
dispositivo ampliou de 2 (dois) para 5 (cinco) dias úteis o prazo para a
licitante micro ou pequena empresa comprovar a regularidade fiscal como
condição para ser contratada após ter sido declarada vencedora das propostas e
após ter ficado devendo, na anterior fase de habilitação na concorrência, na
tomada de preços ou no convite, aquela demonstração de regularidade fiscal. Se
foi pregão a modalidade utilizada, então não aconteceu nenhuma habilitação
condicional, já que a habilitação é apenas do vencedor das propostas.
Vale
esta regra naturalmente para todas as modalidades de licitação, e parece
razoável, já que os anteriores dois dias úteis parecem, e assim se devem ter
revelado, por demais exíguos para a regularização de uma situação por vezes de
demorada solução junto aos órgãos atestadores.
V E prosseguem aquelas alterações:
Art. 47. Nas contratações públicas da
administração direta e indireta, autárquica e fundacional, federal, estadual e
municipal, deverá ser concedido tratamento diferenciado e simplificado para as
microempresas e empresas de pequeno porte objetivando a promoção do
desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, a ampliação
da eficiência das políticas públicas e o incentivo à inovação tecnológica.
Parágrafo único. No que diz respeito às compras
públicas, enquanto não sobrevier legislação estadual, municipal ou regulamento
específico de cada órgão mais favorável à microempresa e empresa de pequeno
porte, aplica-se a legislação federal.
Foi desse modo alterado
o caput e introduzido o
parágrafo único pela LC nº 147/14. Aqui começam os problemas de fato
relevantes.
O
anterior art. 47 da LC nº 123/06 apenas autorizava a Administração a conferir
“tratamento diferenciado e simplificado” às MPEs, porém a partir de agora o que
era apenas facultativo tornou-se obrigatório.
Não
se fala ainda em licitações fechadas às MPEs, mas apenas em que passou a ser
obrigatório ao Poder Público diferenciar o tratamento àquelas empresas, e
simplificá-lo — seja lá isso como for.
O legislador parece não
saber, ou não querer saber, ou fingir desconhecer, que para dar tratamento
diferente a determinadas empresas dentro de licitações é preciso alterar as regras da lei de normas gerais de licitações
e contratos, a Lei nº 8.666/93, e isso nem Estado, algum, nenhum, qualquer
Município pode fazer! Desconhece-o, por acaso, o legislador federal?
Ignora
porventura o legislador que apenas a União pode legislar sobre normas gerais
de licitação e contratos, e que uma lei federal já as enfeixa todas
segundo ela própria reza em seu art. 1º, sem possibilidade de qualquer
interferência estadual ou municipal?
Como
se pode tratar de modo diferente do que a Lei nº 8.666/93 trata as licitações,
seja para MPEs, seja para os licitantes que forem, seja para o objeto que for,
se todas as regras já estão dadas pela lei que se denomina o conjunto total das
normas gerais das licitações e dos contratos administrativos no Brasil?
VI Ainda do art. 47, o parágrafo único remata a aparente
insânia do caput, prevendo que, quanto
às compras públicas, poderá sobrevir
legislação local ainda mais favorável às MPEs, e enquanto tal não ocorra
aplicam-se estas normas federais a Estados, Distrito Federal e Municípios.
Por
tudo que é sagrado em direito, indaga-se como os Estados ou os Municípios o
poderiam ou poderão fazer, diante da taxatividade proibitiva e restritiva do
inc. XXVII do art. 22 da Constituição Federal?
Ou
a LC nº 147/14 já teria também revogado a Constituição?
O
parágrafo único, além disso:
a)
torna evidente que o caput se refere a quaisquer
contratos além dos de compras, como são os de obras e de serviços, e que o
parágrafo apenas diz respeito a compras;
b) o legislador deve ter imaginado que os demais
entes federados tenham interesse em privilegiar mais ainda que a LC nº 123/06
as MPEs, e se resta a dar tratos à bola para saber de onde surgiu essa ideia.
Existirá
mesmo algum interesse governativo local em restringir ainda mais a
competitividade das suas licitações apenas às micro e pequenas empresas?
As
grandes fornecedoras locais de bens e de materiais, que podem ter preços que
ninguém bate em face da economia de escala que promovem porque são grandes, e
cujos impostos pagos sustentam boa parte das máquinas públicas locais, então
essas deveriam ser excluídas das licitações da Prefeitura, ou das estatais
locais? Que espécie de lógica doentia e torpe é essa, e de onde proveio?
Mas,
sobretudo, repete-se o desafio: como juridicamente poderiam os entes federados
alterar regras ditadas pela lei nacional de normas gerais de licitações e
contratos administrativos?
VII O seguinte dispositivo alterado, dentro de nossa matéria,
é este:
Art. 48. Para o cumprimento do disposto no art.
47 desta Lei Complementar, a administração pública:
I – deverá realizar processo licitatório
destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno
porte nos itens de contratação cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil
reais);
II – poderá, em relação aos processos
licitatórios destinados à aquisição de obras e serviços, exigir dos licitantes
a subcontratação de microempresa ou empresa de pequeno porte;
III – deverá estabelecer, em certames para
aquisição de bens de natureza divisível, cota de até 25% (vinte e cinco por
cento) do objeto para a contratação de microempresas e empresas de pequeno
porte.
§1º (Revogado).
(…)
§3º Os
benefícios referidos no caput deste artigo poderão, justificadamente, estabelecer a
prioridade de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte
sediadas local ou regionalmente, até o limite de 10% (dez por cento) do melhor
preço válido.
Pelo inc. I a lei manda que a Administração realize licitações fechadas às MPEs se
cada item de contrato custar até R$80.000,00 — observe-se bem: cada item de contratação. Se o certame for de compra, e tiver 5
(cinco) itens em disputa, sendo dois dos quais de valor inferior aos oitenta
mil e três de valor superior, então somente podem participar
da licitação para os dois as MPEs, e para os três demais se admitem
as demais empresas a propor — o que não impede que as MPEs também participem
nesses três itens.
Mas
não se trata apenas de compras o objeto do dispositivo, pois que isso não está
escrito, de modo que qualquer item a ser contratado, de serviço, de obra ou de
fornecimento, está contemplado na regra.
Leia-se
tudo isso em conjunto com o inc. III, que determina que nas compras de itens
divisíveis — e aqui são apenas compras, não serviços nem obras — “cota de até
25% (vinte e cinco por cento) do objeto para a contratação de microempresas e
empresas de pequeno porte”.
Leia-se
até aqui: mesmo que o item de compra custe um milhão de reais, deverá haver
reservada uma cota de até 25% disso para MPE(s). Tal cota poderá ser de 1% (um
por cento), ou de 0,000001% (um milionésimo por cento), porque a lei não fixa
mínimos, mas não poderá exceder 25%.
A
lei não informa se a MPE precisa vender sua parte ao preço do vencedor,
proporcionalmente, ou se pode ter preço diferente, virtualmente maior. E o §3º
do artigo não resolve essa questão, já que seu assunto é inteiramente outro.
Entendemos,
até aqui, que a matéria não é suscetível de disciplinamento por decreto
federal, eis que esse alteraria o teor substantivo da lei, o que é vedado a
regulamentos.
O
inc. II felizmente manteve apenas a autorização para que o edital estabeleça
que o vencedor, se não for uma MPE, precisará subcontratar MPE(s) em caso de
obras e serviços. Menos mal que os incs. I e III, porque ao menos aqui não
existe obrigação alguma para a Administração.
E também o §3º é
inofensivo, porque apenas permite, faculta ou autoriza que o edital priorize
contratação de MPE(s) local(is) ou regional(is) para fruir os benefícios, não
do caput, como diz a lei, porque o caputnão institui benefício algum a ninguém, mas dos incs. I a III do caput. Sendo apenas autorizativo tal qual o inc. II, então já resta
mais fácil desde logo que o diabo os carregue a ambos, como se deseja.
O
§1º, que limitava o valor das licitações realizadas com fundamento neste art.
48 a 25% do valor total licitado no ano — supostamente para cada um dos itens,
o que a lei não esclarecia — foi revogado, de modo que agora não mais vigora
limite algum de valor, dentro de cada exercício, para contratações efetuadas
através de licitações nos termos do art. 48, envolvendo MPEs e subcontratadas
dessas. A medida é coerente com a escancarada proteção que a lei dá às MPEs em
licitações e contratações.
VIII Mas, dentro deste panorama aterrador, odioso e pleno de
privilégios ilegais, inconcebível num estado de normalidade institucional e
democrática, reservemos o comentário final a estas normas do art. 48 em
conjunto com e em função do que restou da LC nº 123/06 sem as modificações
dadas pela LC nº 147/14, especificamente o art. 49, comentando o resultado de
sua leitura conjunta, e não de cada artigo isolado — ou de outro modo estará
fatalmente errada a conclusão.
É sempre bastante
conveniente ler-se a regra, que se iniciou favorável ou desfavorável, até o fim, eis que o panorama inicial pode converter-se por inteiro em
outro, ou mesmo se inverter.
Reza,
ainda hoje e após a LC nº 147/14, o art. 49 da LC nº 123/06:
Art. 49. Não se aplica o disposto nos arts. 47 e
48 desta Lei Complementar quando:
I – (revogado pela LC 147/14)
II – não houver um mínimo de 3 (três)
fornecedores competitivos enquadrados como microempresas ou empresas de pequeno
porte sediados local ou regionalmente e capazes de cumprir as exigências
estabelecidas no instrumento convocatório;
III – o tratamento diferenciado e simplificado
para as microempresas e empresas de pequeno porte não for vantajoso para a
administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto
a ser contratado.
Diante do disposto no
inc. III, e apenas diante disso, já é possível concluir que jamais a Administração precisará observar os arts. 47 e 48, porque
jamais é vantajoso para a Administração suprimir uma parte dos potenciais
licitantes.
Jamais é vantajoso a quem quer que seja reduzir a concorrência
entre os seus potenciais fornecedores.
Se
um ente público tiver oito licitantes, pode ser bom. Se tiver 9 será melhor,
mas se tiver 17 será bastante melhor, e não tão melhor quanto se tiver 59
participantes, prontos a fornecer obras, serviços ou bens, todos concorrendo em
preço dentro da qualidade mínima que o edital exige.
O mundo tem mais de sete
bilhões de habitantes. Alguma pessoa diverge disso
acima afirmado?
Mais
licitantes são sempre melhor do que menos licitantes, em qualquer país do
mundo, em qualquer circunstância, sob qualquer ponto de vista — desde que seja
sério e honesto de propósito. Discordará, naturalmente, o pilantra a quem
interessa viciar o edital com dirigismos que o favoreçam e eliminem a
concorrência.
Pouco
importa se existem pequenas empresas, microempresas, nanoempresas ou empresas
infinitesimalmente microscópicas, somente detectáveis por microscópios
eletrônicos de varredura. Ter mais empresas concorrendo é melhor do que ter
menos, ontem, hoje e por toda a eternidade. O capitalismo se baseia nisso, e
como sabemos é o pior regime econômico que existe, fora todos os outros.
A
seguir assim a legislação brasileira, espera-se que para participar
de licitação no Brasil somente se admitira pequena ou microempresa. O
único entrave no momento para tanto é a Constituição Federal e a legislação de
normas gerais de licitação.
IX Mas além de profundamente ilógica a ideia de tentar fazer
diminuir a concorrência para favorecer as MPEs em licitações, essa ideia —
porque a LC nº 123 absolutamente não obriga coisa alguma nesse sentido — se
revela simplesmente ilegal, porque contraria o
mais alto princípio da licitação que é o da maior competitividade possível entre os licitantes, plasmado como
princípio e como norma objetiva no art. 3º, §1º, inc. I, da lei nacional de
licitações.
Licitação é
sinônimo de competição, de modo que o art. 3º da Lei nº 8.666/93 — que é a lei
das normas gerais de licitações e
contratos administrativos no Brasil, e, portanto, se situa acima de leis locais e casuísticas
para a União, como é a LC nº 147/14 — assim determina:
Art. 3º (…)
§1º É vedado aos agentes públicos:
I –
admitir, tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que
comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo, inclusive no
caso de sociedades cooperativas, e estabeleçam preferências ou distinções em
razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra
circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato,
ressalvado o disposto [... – matéria sobre produtos nacionais, impertinente ao
caso]
Assim, ao tentar
restringir a competitividade nas licitações, tentando fazer privilegiar as
MPEs, a LC nº 123/06, com a redação que lhe deu a LC nº 147/14, revela-se
simplesmente ilegal.
Contraria
diversos momentos deste inc. I do §1º do art. 3º da lei de licitações, a saber:
(I) compromete, restringe e frustra a competitividade; (II) estabelece
preferências às MPEs apenas por serem MPEs e não porque o objeto justifique as
preferências; (III) tenta proteger as MPEs do local em que se licita.
Triste
país é este, em que uma lei federal contraria outra lei maior de maneira
escancarada e sem disfarce algum!
E a LC nº 147/14 não
contém normas gerais, porque, se contivesse, não teria dado a redação que deu
ao parágrafo único do art. 47 da LC nº 123/06, o qual manda Estados e
Municípios aplicarem a legislação federal enquanto
não sobrevier legislação local mais favorável às MPEs.
Ora, se fossem normas
gerais de licitação as da LC nº 123/06, então obrigatoriamente já se aplicariam a Estados e Municípios,
logo desde que publicada a lei, e não apenas “enquanto não sobrevier legislação local mais
favorável às MPEs”. A norma geral tem aplicabilidade imediata a todos os entes
federados, independentemente de outra legislação existir ou não, e somente a
Constituição as limita.
Então, se a LC nº 123/06
e a LC nº 147/14 não são normas gerais de licitação e contrato, não podem descumprir as normas gerais da Lei nº 8.666/93. As
normas gerais são maiores que as normas locais sobre qualquer assunto.
Tentando
descumpri-las — porque apenas tentou, sem conseguir em razão da própria
antijuridicidade da ideia de tentar restringir a competitividade nas licitações
apenas às MPEs — a LC nº 147/14 se esforça por ser ilegal…
E só não o consegue em
face dos dispositivos que continuam constando da própria LC nº 123/06, em
particular o inc. III do art. 49, que dispensa a aplicação dos arts. 47 e 48 da
lei sempre que isso não for vantajoso à Administração — e nunca é vantajoso excluir competidores numa licitação, além de a tentativa,
ou a aparente ordem da LC, ser ilegal por contrariar o art. 3º
da lei de licitações.
Mas
esse raciocínio — de que o antídoto para o veneno da lei está em outro momento
da mesma lei —, por certo, escapou à conhecida argúcia do legislador federal.
X E, neste panorama lúgubre de trevas da inteligência humana
e da tentativa de anular o direito, este foi o derradeiro dispositivo
modificado pela LC nº 147/14, dentro do presente escopo:
Art. 49 (…)
I – (Revogado);
(…)
IV –
a licitação for dispensável ou inexigível, nos termos dos arts. 24 e
25 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, excetuando-se as dispensas
tratadas pelos incisos I e II do art. 24 da mesma Lei, nas quais a compra
deverá ser feita preferencialmente de microempresas e empresas de pequeno
porte, aplicando-se o disposto no inciso I do art. 48.
Dispositivo
juridicamente indigente, subterrâneo, indigno de figurar entre as mais
primitivas construções do direito. Não fecha ideia alguma, não guarda coerência
consigo mesmo.
Em primeiro lugar, se a
aquisição direta é preferencialmente em favor das MPEs,
então podemos passar ao dispositivo seguinte, porque lei não existe para dar
conselhos a ninguém, mas, sim, para mudar o direito. Para dar conselhos
devem-se preferir fábulas ou províncias da filosofia.
Em
segundo, como se poderia aplicar uma regra de licitação na dispensa
de licitação?
Como se pode aplicar o
inc. I do art. 48 na dispensa de licitação por valor, se o inc. I do
art. 48 manda a Administração realizar licitação fechada às MPEs? Que
tem a ver uma coisa com outra? Se épreferencialmente, então nenhuma
obrigação existe para o Poder Público de fechar as contratações diretas em prol
das MPEs,
Se
a redação originária do inc. IV do art. 49 da LC nº 123/06 já não tinha sentido
algum, com esta modificação perdeu o que já não tinha.
No
aparente desespero de favorecer MPEs, o legislador brasileiro perdeu
completamente o senso de lógica e de coerência, para não dizer de ridículo
dentro do panorama do direito.
O dispositivo merece o
mais absoluto desprezo e desconsideração, porque ad impossibilia nemo tenetur, ou seja ninguém é obrigado ao impossível. Normas que não encerram
uma ordem que faça sentido merecem a mesma consideração que normas
inexistentes, e esta constitui, nesse sentido, outra que envergonha o direito
brasileiro.
XI Agora falemos de ideologia.
As
micro e as pequenas empresas merecem e merecerão sempre todo o amparo e o
incentivo do governo e da sociedade. Constituem importantíssimo segmento do
mundo empresarial, a cada vez mais relevante em termos de movimentação
financeira, de produção interna e de geração de empregos, para resumir a estes
pontos o enfoque.
Mas esse fato inegável
não justifica excluir, ou tentar excluir, as grandes empresas brasileiras que
construíram o país — às quais o Brasil deve historicamente muito mais do que às MPEs até o dia de hoje —, porque apenas neste
momento as MPEs estão despontando como grande força produtiva da sociedade.
A
legislação protetiva das MPEs, entretanto, tendo perdido por completo a noção
de limites jurídicos incidentes sobre o tema, fá-lo de forma facciosa,
sectária, discriminatória, injusta, ilegal e profundamente contrária ao
interesse público, como pretendeu esta inominavelmente ruim LC nº 147/14 quanto
a licitações e acesso das MPEs ao mercado.
Se
nessa parte a LC nº 123/06 era já tecnicamente péssima, como disséramos em
artigo, eis que o incrivelmente criativo legislador brasileiro conseguiu
piorá-la na sua quase nenhuma técnica — mas não a ponto de obrigar ao Poder
Público realizar licitações somente para MPEs, como os afoitos e os apressados
oportunistas de todo gênero, querendo vender alguma coisa, já tentaram
apregoar.
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Fonte da matéria |
E
em direito os fins não justificam os meios, e as formas não podem jamais ser
abstraídas em prol da cândida ideologia do momento, cambiável assim que a brisa
for outra e que o modismo do momento conduzir em outra direção. As modas e as
políticas passam como as horas, mas o formalismo jurídico fica, ou de outro
modo o homem em breve estará de volta às cavernas.
Por
fim, observando tal quadro, e ainda que sejamos um estado laico, não custa
suplicar: Deus proteja a república federativa do Brasil.
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